Buenos Aires,
1936. Jorge Luis Borges publica a primeira edição do livro Historia de la eternidad. No capítulo “O tempo circular”, o
escritor evoca três momentos na história do pensamento ocidental para sustentar
a tese do Eterno Retorno. No Timeu de
Platão, o filósofo grego afirmava que o destino dos homens era regido pela
posição dos astros e que, sendo os sete planetas então vislumbrados
equilibrados e organizados ciclicamente, a história universal sempre retornava
ao seu ponto inicial. Em Nietzsche, a consideração acerca da impossibilidade de
um objeto n produzir infinitas
variações demonstrava a finitude da matéria e, portanto, a repetição das
posições no universo. Longe dos constrangimentos físicos e metafísicos, Borges
defendeu uma concepção de tempo “menos pavoroso e melodramático”, a existência
de ciclos temporais “similares, não idênticos” (2010, p. 78). Para sustentar o
argumento, referiu-se ao pensamento de Marco Aurélio a propósito do caráter
idêntico das longas e das pequenas durações, ambas projeções inequívocas do
instante: “O termo mais longo e o mais breve são, portanto, iguais. O presente
é de todos; morrer é perder o presente, que é um lapso brevíssimo. Ninguém
perde o passado nem o futuro, pois ninguém pode ser privado do que não tem.”
(apud BORGES, 2010, p. 79). Do anterior, Borges depreende duas ideias: a
primeira, de que toda forma de vida se encerra no presente; a segunda, de que a
experiência sempre se repete e, nesse sentido, nenhuma novidade é possível. E
então arremata: “a história universal é a de um só homem” (BORGES, 2010, p. 80).
Se a asserção do escritor pode parecer, quase oitenta anos mais tarde,
contra-intuitiva e deveras pessimista, é o próprio Borges quem matiza o argumento,
devolvendo-lhe alguma possibilidade redentora.
Em
tempos de apogeu a conjectura de que a existência do homem é uma grandeza
constante, invariável, pode ser causa de tristeza ou de irritação; em tempos de
declínio (como estes), é a promessa de que nenhum opróbrio, nenhuma calamidade,
nenhum ditador poderá nos empobrecer. (BORGES, 2010, p. 81)
Rio de
janeiro, 1936. Stefan Zweig profere a conferência “L`Unité spirituelle du monde” no Instituto Nacional de Música, na
Lapa, que, posteriormente, seria entregue ao chanceler Macedo Soares e lançada
no Brasil e na Argentina, com tradução de Alfredo Cahn, alcançando desde o
princípio um enorme sucesso. Na conferência, Zweig condenava os “ciúmes
nacionalistas” como substratos da guerra na Europa e apelava às jovens nações
americanas seu potencial para garantir a pacificação e a integração mundiais:
“toda a nossa esperança é dirigida a vocês, povos jovens e ainda com frescor,
que vivem para o futuro, não para o passado com suas ideias obsoletas.” (ZWEIG,
2013, p. 251). Judeu de nacionalidade austríaca, Zweig seria acolhido em solo
brasileiro poucos anos mais tarde, onde se refugiaria da projeção nazista na
Europa até suicidar-se, em 1942. Já insatisfeito com os rumos da política
europeia, Zweig elencava em 1936 os dois principais legados da Primeira Guerra,
qual fossem, a perda de direito do continente europeu à liderança espiritual do
mundo e a incapacidade da tecnologia de conduzir ao “progresso moral da
humanidade”. Reconhecendo a dimensão possivelmente utópica de suas aspirações
universalistas e pacifistas, no entanto, Zweig não hesitou em admitir: “Mesmo
supondo que estejamos equivocados e que tenhamos servido a um delírio, teremos
vivido o delírio mais nobre da Terra” (ZWEIG, 2013, p. 253).
A
coincidência entre os textos de Borges e Zweig não é apenas cronológica. É
tampouco meramente geográfica, a despeito de sua bem sucedida recepção ter se dado,
no princípio, entre Buenos Aires e o Rio de Janeiro. Os dois textos, datados de
1936, encerram em si uma concepção de história e um programa político assentados
no princípio da universalidade. Se, em Borges, a noção de tempo circular
vincula o homem à história universal, subsumindo-o e elevando-o, em Zweig, o
progresso moral da humanidade é depositado na juventude da América Latina,
diante da entrega europeia à sanha nacionalista. Se, em Borges, a
repetibilidade da história pode assegurar a fé no futuro e a crença de que
nenhuma catástrofe representa a queda absoluta do homem, em Zweig, o
desapontamento real pela guerra e pela ascensão do nazismo na Europa não representava
o fim trágico em si mesmo, ao contrário, o fundamento de uma nova política de
paz para o mundo.
Nosso tempo consagrou
o ceticismo em relação aos projetos com pretensão de universalidade. Desde a
noção borgiana de tempo cíclico, há muito abandonada, até as aspirações
humanistas que acalentaram os sonhos de integração e paz mundial zweigueanos, todos
os projetos cosmopolitas parecem subsumidos pela pós-modernidade e suas
destilações teóricas. Escrevendo nos anos de 2000, Sergio Paulo Rouanet
sentenciou: “o universal da Ilustração explodiu em mil estilhaços” (2007, p.
218). A isso associa-se uma concepção de história hegemônica, afirmada entre o
acontecimento, a experiência e a narrativa, que prima pela irrepetibilidade,
pela singularidade e pela novidade. Ela impõe uma exigência metódica, qual
seja, a de que o rigor do trabalho com as fontes, articulada à precisão conceitual,
devolva ao objeto a sua historicidade.
A despeito do
anterior, a pretensão de universalidade ainda se faz notar amplamente em uma
certa teoria, que, enquanto renuncia a uma história (experiência) universal,
advoga ainda por uma história (saber) universal, que deve ser sempre
suficientemente plástica para abrigar o particular. Entre o “espaço de
experiência” e o “horizonte de
expectativa” de Reinhardt Koselleck (2006) e os “regimes de historicidade” de
François Hartog (2014), largamente instrumentalizados no fazer historiográfico
corrente, sedimenta-se um duplo e dubio esforço: recompor o universal da
Ilustração, restituindo à história a segurança epistemológica pretendida nos
idos do século XIX, justapondo-a a uma história dedicada aos nacos e aos cacos.
Ser moderno e pós-moderno. Se a noção de história cíclica de Borges deve
caducar no tempo da escrita, o mesmo há que se dizer da crença no progresso
moral da humanidade capitaneada pela América Latina idílica, jovem e isenta de
disputas de Zweig. Por outro lado, a dinâmica que vincula o particular ao
universal, na tese dos autores, inspirando menos uma postura epistemológica e
mais uma resistência política assentada em princípios humanistas, se faz legado
para o nosso tempo.
Entre 06 e 09
de outubro de 2015, a linha de pesquisa “Sociedade, Relações de Poder e Região”,
do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da Universidade Federal da
Bahia (UFBA), realizará o seu IV SEHPOLIS – Seminário de História Política, nas
dependências do Campus de Ondina, em Salvador, Bahia. A proposta é reunir pesquisadores dedicados à História Política, dando
visibilidade nacional às pesquisas realizadas por professores e alunos do
PPGH/UFBA, bem como fortalecendo seus laços com estudiosos de outras
universidades brasileiras, que também poderão apresentar seus trabalhos. A
linha de pesquisa reúne hoje dez professores doutores com ampla produção e
reconhecimento na área de história política e mais de trinta estudantes de
mestrado e doutorado com pesquisas circunscritas ao campo.
O SEHPOLIS está em sua quarta edição. O evento já reuniu, em suas
edições anteriores, centenas de professores e alunos de pós-graduação, que
apresentaram resultados parciais ou finais de suas pesquisas, bem como um
público expressivo, oriundo de diversas instituições de ensino superior do
estado da Bahia. Em virtude da excelência dos trabalhos apresentados durante os
eventos, foi produzida uma coletânea de textos, que representa uma importante
contribuição da UFBA à literatura no campo da História Política produzida no
Brasil.
O tema desta edição é “História e
Política: usos do passado, contingências e expectativas”. Ao longo do evento,
serão proferidas três conferências, cada uma delas transitando por temas
específicos da história colonial, imperial e republicana brasileira e, ao mesmo
tempo, tocando nas grandes querelas que despertaram e despertam paixões
políticas entre a história vivida e a história narrada. No dia 06 de outubro, o
professor Dr. Bryan McCann, da Universidade de Georgetown, um dos mais reconhecidos
brasilianistas em atividade nos Estados Unidos, proferirá a conferência "As Agruras da Democracia: Brasil na época
da redemocratização". No dia 07 de outubro, o professor Dr. Luciano Raposo
de Almeida Figueiredo, da Universidade Federal Fluminense, um dos historiadores
brasileiros de maior relevo no campo de Brasil colonial, discorrerá sobre o
tema “"Bahia de Todas as Revoltas: o motim do Maneta em Salvador
(1710-1711)". No dia 08 de outubro, o professor Dr. José Subtil, da
Universidade Autônoma de Lisboa, um notável historiador português dedicado à
história política e institucional moderna, apresentará a conferência os
"Os sujeitos e os desejos da História".
Entre
agruras, revoltas e desejos, a quarta edição do SEHPOLIS propõe apartar os
termos história e política para singulariza-los e, ao mesmo tempo, sublinhar as
imbricações entre os dois campos. Trata-se de uma história política que lida,
no plano da pesquisa e da elaboração narrativa, com as tensões entre presente,
passado e futuro - artefatos de gestão de memória, constrangimentos e projeções
-, mas também uma história saber que se coloca, ela mesma, na arena do debate
político do nosso tempo. Evocando Borges e Zweig, “em tempos de declínio (como
estes)” “sejamos determinados e ao mesmo tempo pacientes: não nos deixemos
confundir do fundo da alma por toda insensatez e desumanidade da nossa época,
conservemo-nos fiéis à ideia atemporal de humanidade – não é tão difícil!”. Por
certo, a ideia de “humanidade” não é atemporal, mas há que se considerá-la um irrenunciável
legado do projeto moderno. O argumento, claro, não é novo e também não é puramente
epistemológico, mas sobretudo político: contra o niilismo contemporâneo, uma
história que faça e se faça frente: No
pasarán!
Laura de Oliveira
Coordenadora pro tempore da
Linha de Pesquisa “Sociedade, Relações de Poder e
Região”
Programa de Pós-graduação em
História
Universidade Federal da Bahia
Salvador da Baía, outono de 2015
Referências
BORGES,
Jorge Luis. “O tempo circular”. In: História
da Eternidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 76-81.
KOSELLECK,
Reinhart. Futuro Passado: contribuição
à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio,
2006.
HARTOG,
François. Regimes de Historicidade:
presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
ROUANET, Sergio Paulo. Dilemas da moral iluminista. In: NOVAES, Adauto (org.). Ética. São Paulo: Cia das Letras, 2007.
p. 207-225.
ZWEIG,
Stefan. “A unidade espiritual do mundo”. In: O mundo insone. Rio de Janeiro: Zahar, 2013, p. 249-254.