quinta-feira, 30 de abril de 2015

IV SEHPOLIS: apresentação

Buenos Aires, 1936. Jorge Luis Borges publica a primeira edição do livro Historia de la eternidad. No capítulo “O tempo circular”, o escritor evoca três momentos na história do pensamento ocidental para sustentar a tese do Eterno Retorno. No Timeu de Platão, o filósofo grego afirmava que o destino dos homens era regido pela posição dos astros e que, sendo os sete planetas então vislumbrados equilibrados e organizados ciclicamente, a história universal sempre retornava ao seu ponto inicial. Em Nietzsche, a consideração acerca da impossibilidade de um objeto n produzir infinitas variações demonstrava a finitude da matéria e, portanto, a repetição das posições no universo. Longe dos constrangimentos físicos e metafísicos, Borges defendeu uma concepção de tempo “menos pavoroso e melodramático”, a existência de ciclos temporais “similares, não idênticos” (2010, p. 78). Para sustentar o argumento, referiu-se ao pensamento de Marco Aurélio a propósito do caráter idêntico das longas e das pequenas durações, ambas projeções inequívocas do instante: “O termo mais longo e o mais breve são, portanto, iguais. O presente é de todos; morrer é perder o presente, que é um lapso brevíssimo. Ninguém perde o passado nem o futuro, pois ninguém pode ser privado do que não tem.” (apud BORGES, 2010, p. 79). Do anterior, Borges depreende duas ideias: a primeira, de que toda forma de vida se encerra no presente; a segunda, de que a experiência sempre se repete e, nesse sentido, nenhuma novidade é possível. E então arremata: “a história universal é a de um só homem” (BORGES, 2010, p. 80). Se a asserção do escritor pode parecer, quase oitenta anos mais tarde, contra-intuitiva e deveras pessimista, é o próprio Borges quem matiza o argumento, devolvendo-lhe alguma possibilidade redentora.

Em tempos de apogeu a conjectura de que a existência do homem é uma grandeza constante, invariável, pode ser causa de tristeza ou de irritação; em tempos de declínio (como estes), é a promessa de que nenhum opróbrio, nenhuma calamidade, nenhum ditador poderá nos empobrecer. (BORGES, 2010, p. 81)

Rio de janeiro, 1936. Stefan Zweig profere a conferência “L`Unité spirituelle du monde” no Instituto Nacional de Música, na Lapa, que, posteriormente, seria entregue ao chanceler Macedo Soares e lançada no Brasil e na Argentina, com tradução de Alfredo Cahn, alcançando desde o princípio um enorme sucesso. Na conferência, Zweig condenava os “ciúmes nacionalistas” como substratos da guerra na Europa e apelava às jovens nações americanas seu potencial para garantir a pacificação e a integração mundiais: “toda a nossa esperança é dirigida a vocês, povos jovens e ainda com frescor, que vivem para o futuro, não para o passado com suas ideias obsoletas.” (ZWEIG, 2013, p. 251). Judeu de nacionalidade austríaca, Zweig seria acolhido em solo brasileiro poucos anos mais tarde, onde se refugiaria da projeção nazista na Europa até suicidar-se, em 1942. Já insatisfeito com os rumos da política europeia, Zweig elencava em 1936 os dois principais legados da Primeira Guerra, qual fossem, a perda de direito do continente europeu à liderança espiritual do mundo e a incapacidade da tecnologia de conduzir ao “progresso moral da humanidade”. Reconhecendo a dimensão possivelmente utópica de suas aspirações universalistas e pacifistas, no entanto, Zweig não hesitou em admitir: “Mesmo supondo que estejamos equivocados e que tenhamos servido a um delírio, teremos vivido o delírio mais nobre da Terra” (ZWEIG, 2013, p. 253).
A coincidência entre os textos de Borges e Zweig não é apenas cronológica. É tampouco meramente geográfica, a despeito de sua bem sucedida recepção ter se dado, no princípio, entre Buenos Aires e o Rio de Janeiro. Os dois textos, datados de 1936, encerram em si uma concepção de história e um programa político assentados no princípio da universalidade. Se, em Borges, a noção de tempo circular vincula o homem à história universal, subsumindo-o e elevando-o, em Zweig, o progresso moral da humanidade é depositado na juventude da América Latina, diante da entrega europeia à sanha nacionalista. Se, em Borges, a repetibilidade da história pode assegurar a fé no futuro e a crença de que nenhuma catástrofe representa a queda absoluta do homem, em Zweig, o desapontamento real pela guerra e pela ascensão do nazismo na Europa não representava o fim trágico em si mesmo, ao contrário, o fundamento de uma nova política de paz para o mundo.
Nosso tempo consagrou o ceticismo em relação aos projetos com pretensão de universalidade. Desde a noção borgiana de tempo cíclico, há muito abandonada, até as aspirações humanistas que acalentaram os sonhos de integração e paz mundial zweigueanos, todos os projetos cosmopolitas parecem subsumidos pela pós-modernidade e suas destilações teóricas. Escrevendo nos anos de 2000, Sergio Paulo Rouanet sentenciou: “o universal da Ilustração explodiu em mil estilhaços” (2007, p. 218). A isso associa-se uma concepção de história hegemônica, afirmada entre o acontecimento, a experiência e a narrativa, que prima pela irrepetibilidade, pela singularidade e pela novidade. Ela impõe uma exigência metódica, qual seja, a de que o rigor do trabalho com as fontes, articulada à precisão conceitual, devolva ao objeto a sua historicidade.
A despeito do anterior, a pretensão de universalidade ainda se faz notar amplamente em uma certa teoria, que, enquanto renuncia a uma história (experiência) universal, advoga ainda por uma história (saber) universal, que deve ser sempre suficientemente plástica para abrigar o particular. Entre o “espaço de experiência” e o  “horizonte de expectativa” de Reinhardt Koselleck (2006) e os “regimes de historicidade” de François Hartog (2014), largamente instrumentalizados no fazer historiográfico corrente, sedimenta-se um duplo e dubio esforço: recompor o universal da Ilustração, restituindo à história a segurança epistemológica pretendida nos idos do século XIX, justapondo-a a uma história dedicada aos nacos e aos cacos. Ser moderno e pós-moderno. Se a noção de história cíclica de Borges deve caducar no tempo da escrita, o mesmo há que se dizer da crença no progresso moral da humanidade capitaneada pela América Latina idílica, jovem e isenta de disputas de Zweig. Por outro lado, a dinâmica que vincula o particular ao universal, na tese dos autores, inspirando menos uma postura epistemológica e mais uma resistência política assentada em princípios humanistas, se faz legado para o nosso tempo.
Entre 06 e 09 de outubro de 2015, a linha de pesquisa “Sociedade, Relações de Poder e Região”, do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) da Universidade Federal da Bahia (UFBA), realizará o seu IV SEHPOLIS – Seminário de História Política, nas dependências do Campus de Ondina, em Salvador, Bahia. A proposta é reunir pesquisadores dedicados à História Política, dando visibilidade nacional às pesquisas realizadas por professores e alunos do PPGH/UFBA, bem como fortalecendo seus laços com estudiosos de outras universidades brasileiras, que também poderão apresentar seus trabalhos. A linha de pesquisa reúne hoje dez professores doutores com ampla produção e reconhecimento na área de história política e mais de trinta estudantes de mestrado e doutorado com pesquisas circunscritas ao campo.
O SEHPOLIS está em sua quarta edição. O evento já reuniu, em suas edições anteriores, centenas de professores e alunos de pós-graduação, que apresentaram resultados parciais ou finais de suas pesquisas, bem como um público expressivo, oriundo de diversas instituições de ensino superior do estado da Bahia. Em virtude da excelência dos trabalhos apresentados durante os eventos, foi produzida uma coletânea de textos, que representa uma importante contribuição da UFBA à literatura no campo da História Política produzida no Brasil.
O tema desta edição é “História e Política: usos do passado, contingências e expectativas”. Ao longo do evento, serão proferidas três conferências, cada uma delas transitando por temas específicos da história colonial, imperial e republicana brasileira e, ao mesmo tempo, tocando nas grandes querelas que despertaram e despertam paixões políticas entre a história vivida e a história narrada. No dia 06 de outubro, o professor Dr. Bryan McCann, da Universidade de Georgetown, um dos mais reconhecidos brasilianistas em atividade nos Estados Unidos, proferirá a conferência "As Agruras da Democracia: Brasil na época da redemocratização". No dia 07 de outubro, o professor Dr. Luciano Raposo de Almeida Figueiredo, da Universidade Federal Fluminense, um dos historiadores brasileiros de maior relevo no campo de Brasil colonial, discorrerá sobre o tema “"Bahia de Todas as Revoltas: o motim do Maneta em Salvador (1710-1711)". No dia 08 de outubro, o professor Dr. José Subtil, da Universidade Autônoma de Lisboa, um notável historiador português dedicado à história política e institucional moderna, apresentará a conferência os "Os sujeitos e os desejos da História".

Entre agruras, revoltas e desejos, a quarta edição do SEHPOLIS propõe apartar os termos história e política para singulariza-los e, ao mesmo tempo, sublinhar as imbricações entre os dois campos. Trata-se de uma história política que lida, no plano da pesquisa e da elaboração narrativa, com as tensões entre presente, passado e futuro - artefatos de gestão de memória, constrangimentos e projeções -, mas também uma história saber que se coloca, ela mesma, na arena do debate político do nosso tempo. Evocando Borges e Zweig, “em tempos de declínio (como estes)” “sejamos determinados e ao mesmo tempo pacientes: não nos deixemos confundir do fundo da alma por toda insensatez e desumanidade da nossa época, conservemo-nos fiéis à ideia atemporal de humanidade – não é tão difícil!”. Por certo, a ideia de “humanidade” não é atemporal, mas há que se considerá-la um irrenunciável legado do projeto moderno. O argumento, claro, não é novo e também não é puramente epistemológico, mas sobretudo político: contra o niilismo contemporâneo, uma história que faça e se faça frente: No pasarán!


Laura de Oliveira
Coordenadora pro tempore da 
Linha de Pesquisa “Sociedade, Relações de Poder e Região”
Programa de Pós-graduação em História
Universidade Federal da Bahia


Salvador da Baía, outono de 2015


Referências

BORGES, Jorge Luis. “O tempo circular”. In: História da Eternidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010, p. 76-81.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto: Ed. PUC-Rio, 2006.
HARTOG, François. Regimes de Historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.
ROUANET, Sergio Paulo. Dilemas da moral iluminista. In: NOVAES, Adauto (org.). Ética. São Paulo: Cia das Letras, 2007. p. 207-225.

ZWEIG, Stefan. “A unidade espiritual do mundo”. In: O mundo insone. Rio de Janeiro: Zahar, 2013, p. 249-254.

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